O barão da imprensa entrevista Lula, o sindicalista
Lula tornou-se uma figura pública em 1978, quando liderou a greve dos metalúrgicos do ABC paulista. Naquele ano, o jornalista Ruy Mesquita fez uma histórica entrevista com ele, que durou quatro horas. Passados 26 anos, o patriarca do Grupo Estado cedeu este material a este jornalista. É um documento histórico que disseca o pensamento do então jovem líder sindical, que viria a se tornar presidente da República.
[OBS. Uma versão adaptada deste texto foi apresentada como trabalho final na primeira turma do curso Agenda Brasil, em nível de MBA, realizado pela FAAP em 2004.]
Por Renato Delmanto
Em junho de 1978, o então diretor do Jornal da Tarde, Ruy Mesquita, fez uma histórica entrevista com o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Luiz Inácio da Silva. A idéia da entrevista surgiu após Mesquita ter assistido à participação de Lula no programa Vox Populi, da TV Cultura. Ruy Mesquita comentou com o amigo Luís Carta, proprietário da Carta Editorial, que ficara impressionado com o surgimento de um líder proletário autêntico, “incontaminado política ou ideologicamente”. No dia seguinte, Carta pediu a Mesquita (“meio à traição”, lembra o diretor do JT) que entrevistasse Lula, então com 32 anos, para a revista Senhor Vogue. Apenas uma pequena parte do material foi publicada. Passados 26 anos, Ruy Mesquita, já patriarca da família proprietária do Grupo Estado, entregou com exclusividade a este jornalista as 139 laudas com a transcrição das quase quatro horas de conversa com Lula em 1978.
O material é riquíssimo, não apenas pelo fato de Lula ter se tornado presidente da República (2003–2010). É precioso principalmente por dissecar o pensamento do então sindicalista e por mostrar como surgiu aquele movimento operário em pleno governo militar, independentemente de partidos ou lideranças políticas estabelecidas. É um documento histórico, que retrata uma época em que as instituições, ainda traumatizadas por catorze anos de ditadura militar, tentavam reaprender a conviver com as liberdades democráticas.
Em 1978, o Brasil vivia os últimos meses do governo do general Ernesto Geisel e estava em curso o projeto de abertura política lenta e gradual. Havia apenas dois partidos, a governista Arena, e o MDB, de oposição. A imprensa recomeçava a experimentar certa liberdade, três anos depois do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-Codi, em São Paulo. Mas ainda havia o ranço da censura, tanto que a entrevista de Lula à TV Cultura por pouco não foi vetada pelos militares [leia no final deste texto o relato Roberto Muylaert].
Esta matéria não pretende contrapor as idéias daquele Lula sindicalista às do Lula que virou presidente. O propósito é resgatar aquele momento histórico, que precedeu a transformação do dirigente sindical em líder político nacional.
[Nota do autor: este texto foi escrito em 2004, portanto quando Lula estava na Presidência e antes da revelação do caso Mensalão e do chamado Petrolão; muito antes também da condenação de Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi opção do autor não atualizar esses temas no texto, para não distorcer o conteúdo originalmente pretendido. A matéria foi publicada pela primeira vez no portal AOL, em 17 de setembro de 2004.]
No texto publicado na revista Senhor, Ruy Mesquita ambienta a entrevista: “O encontro foi na minha casa, numa dessas noites frias do começo de junho e o papo, descontraído, sem qualquer tipo de policiamento mental, regado a whisky (eu) e pinga (ele)”. A conversa foi presenciada pelos quatro filhos de Mesquita (Ruyzito, Rodrigo, Fernão e João Lara) e pelos jornalistas Paulo Mendonça e Jorge da Cunha Lima, então diretores da Senhor. Mesquita diz ainda: “A conversa fluiu tão espontaneamente, tão gostosamente durante as quase quatro horas que durou, que não houve tempo para, e nem havia sentido mais, um interrogatório estilo bate-pronto”.
No Vox Populi, Lula dissera não ter ambições políticas. Na conversa com Ruy Mesquita, revelou-se apartidário e um tanto avesso às velhas lideranças de esquerda. Criticava universitários (“eles serão os patrões de amanhã”) e dizia-se comprometido apenas com as causas dos trabalhadores. Criticava também certas posturas da imprensa (“eu passei a ter a coragem de responder àquilo que a imprensa me perguntava”), embora admitisse que o movimento dos metalúrgicos devia à mídia grande parte da notoriedade que conquistara.
Uma das principais preocupações de Mesquita na entrevista é extrair de Lula a inclinação ideológica do interlocutor. No entanto, o sindicalista se mostrava, também ali, independente. Admitiu, por exemplo, que o sindicalismo só era forte no sistema capitalista (“onde existe a ganância do poder, a ganância do ganhar bem”). E que era preferível trabalhar na iniciativa privada do que para o patrão estatal. O Lula revelado na entrevista não era, portanto, um socialista.
O sindicalista admitia ter uma visão simplista sobre temas como política externa e macroeconomia. Indagado sobre o que faria com o salário mínimo caso um dia chegasse à Presidência, Lula responde: “Se fosse governo, a primeira coisa que faria seria a experiência de viver com 1.560 cruzeiros (equivalentes à época a 90 dólares). Eu desceria até o povão para ver, ia procurar uma casa para alugar, eu iria na feira fazer as despesas com a minha esposa e iria decretar um salário mínimo condizente com o povo brasileiro.”
“A minha análise é muito simplista como trabalhador”, admite. Lula tinha, como definiu Ruy Mesquita, uma “singeleza de objetivos”: defendia que o maior número possível de trabalhadores pudesse ter um nível de vida compatível com a dignidade humana. “Um trabalhador precisaria ganhar o suficiente para usar um terno bonito, para ele ter um carro, para ele ter uma televisão a cores, para ele ter, enfim, aquilo que ele produz.”
Esse posicionamento de Lula, na análise do barão da mídia paulista, irritava “os ideologicamente engajados, da imprensa, da política, das universidades”. Para o jornalista, até àquele momento, esses “engajados” tinham visto “baldados seus esforços para manipulá-lo em benefício de seus interesses políticos ou ideológicos, que nada têm em comum com os interesses que Lula defende”.
Em 1978, ao finalizar a reportagem, Dr. Ruy Mesquita escreveu que se tratava do surgimento, pela primeira vez na história do sindicalismo brasileiro, de um líder em estado de pureza. “Se vai continuar assim depois que passou a ocupar as primeiras páginas dos jornais, depois que passou a ser vedete da televisão, depois, afinal, que a liberdade de imprensa permitiu que ele, quer queira quer não, passasse a exercer uma liderança ‘política’, só o futuro dirá.”
Não foi o que ocorreu: já no segundo semestre de 1978, Lula começou a amadurecer, juntamente com sindicalistas como Jacó Bittar e Olívio Dutra, a idéia de criação de um partido. Em fevereiro de 1980 foi fundado o PT, com a participação de lideranças da esquerda do MDB, integrantes de partidos clandestinos e intelectuais. Enfim, o PT nasceu com a participação de alguns daqueles “engajados”, e Lula sempre foi sua principal estrela política. Em 2002, foi eleito para a Presidência da República, com 52 milhões de votos.
A seguir, confira alguns trechos dessa entrevista:
“Os estudantes são os patrões de amanhã”
Na entrevista, Lula critica a forma preconceituosa como as elites olhavam para a classe trabalhadora — particularmente na forma como os estudantes, embora empenhados em colaborar com a luta sindical, se relacionavam com o movimento. Para ele, os estudantes são os patrões do futuro. “Os únicos estudantes honestos que eu vi foram os da Fundação Getúlio Vargas”, dizia Lula. Isso porque eles o procuraram para conversar, mas admitiam não ter capacidade de agregar os trabalhadores.
“Comecei a enfrentar a imprensa sem medo”
Em pleno início de abertura política, em que o país saía da fase de censura, a greve de 1978 fez com que Lula se tornasse uma espécie de vedete de jornais e revistas. Apesar da ajuda que recebeu da imprensa para ganhar notoriedade, Lula criticava a atuação de alguns profissionais, que segundo ele retratavam de forma preconceituosa a classe trabalhadora. “A concepção (que a mídia) tem de trabalhador é que ele tem de ser miserável, ele tem que morar em barraco”, dizia.
“Em 64, eu era um molecão de 18 anos”
Em 1964, Lula tinha 18 anos e pouco sentiu os efeitos da ditadura militar. “Eu era um molecão e estava preocupado com aquilo que acontecia muito próximo”, diz. Para a sua geração de sindicalistas, os militares eram vistos como detentores do poder que nada faziam pela classe trabalhadora, mas não personificavam o regime de exceção. Lula também não notava distinções entre os governantes civis apoiados pelo regime. “Para mim, Natel, Maluf, Paulo Egydio não muda nada, porque o sistema os escolheu, eles não têm compromisso com o povo.”
Ruy Mesquita — Onde você estava em 64?
Lula — Eu era um recém-formado do Senai. Eu me lembro que — deixa ver se eu recordo bem — no dia em que João Goulart foi afastado…
Ruy Mesquita — Não, espera aí, Lula. Você é muito moço e é por isso que eu estava querendo saber o que você pensava sobre o negócio de 64. Ali foi um problema exclusivamente do comunismo. Quer dizer, o Jango Goulart, provavelmente inconscientemente, foi manobrado pelos comunistas e ele estava levando o país para aquilo. Se ele ganhasse, ia dar o golpe que ele anunciou, que ele descreveu — que era modificar inteiramente o regime político brasileiro no sentido de levar o Brasil a ser uma Cuba continental. Isso é verdade histórica, ele falou, está gravado. Agora, houve a subversão dentro das Forças Armadas, esse é que foi o erro básico dele. Eu conspirei durante dois anos, desde o dia da posse dele até a queda, eu conspirei aqui dentro desta sala. Tinha, semanalmente, 30, 40, 50 oficiais do Exército conspirando conosco e o que nós esperávamos era resistir ao golpe. Não estou arrependido, absolutamente. Não, porque tinha plena consciência de que ia acontecer isso. Naquela época, eu ia discutir com os estudantes nas universidades, eles me convidavam, e eu descrevia para eles o que ia acontecer no Brasil. Eu dizia: vocês estão enganados; o Brasil não está preparado para isso. Vocês não vão conquistar o poder; o que vai acontecer vai ser que as Forças Armadas vão conquistar o poder e vão instalar aqui uma ditadura. E se nós, Estado de S.Paulo, sobrevivermos, no dia seguinte nós vamos estar contra essa ditadura e vocês, estudantes, vão recorrer a nós para os salvar da pressão que a ditadura vai exercer sobre vocês. E foi o que aconteceu, exatamente.
“Tenho compromisso pura e simplesmente com os trabalhadores”
O papel do sindicalista foi um dos aspectos mais explorados por Ruy Mesquita na conversa com Lula. Por vezes, longas falas de cada um deles buscavam explicar o surgimento daquela nova liderança proletária, contra uma liderança viciada que costumava ocupar sindicatos desde a época da criação da CLT por Getúlio Vargas.
Ruy Mesquita — Como é que foi possível, depois de 14 anos de silêncio total, em que ninguém se lembrou de que existe o problema dos sindicatos, dos operários, se criar um tipo de movimento sindical como este que você encarna e que surgiu debaixo do pano, sem que ninguém soubesse ou tomasse conhecimento que ele estava acontecendo? Foi uma coisa espontânea ou houve uma planificação?
Lula — Eu tenho o objetivo de dizer aquilo que eu sinto. Com relação ao surgimento do movimento sindical brasileiro, em alguns sindicatos brasileiros hoje, eu acho que está meio patenteado que quando um homem não tem compromisso — eu costumo usar muito a palavra rabo preso — quando um homem tem um compromisso pura e simplesmente com sua consciência ou com aquilo que ele representa, eu acho que as coisas se tornam mais fáceis. Comigo aconteceu uma coisa muito interessante: eu era, até outro dia, um dirigente sindical igual a todos os outros. Mas em outubro de 75 eu viajei para o Japão e, quando estava no Japão, eu soube da prisão de um irmão meu (Frei Chico), que era vice-presidente do sindicato. E quando eu digo que eu era um presidente igual a todos os outros é porque eu era um presidente de sindicato com medo, era um cara que estava há seis meses apenas na presidência do sindicato e tinha medo de qualquer coisa. Eu achava que a prisão era o fim do mundo, tinha preocupação com a minha família: com meu filho, com minha esposa, com minha mãe. Eu fiquei vinte e poucos dias no Japão. Quando eu voltei, eu soube da prisão do meu irmão — ele tinha sido preso como subversivo, não sei o que lá, uma história muito complicada. Depois que meu irmão saiu, que me contou aquilo que passou na cadeia (Frei Chico foi torturado no DOI-Codi), eu resolvi tomar uma posição, porque eu acho que aquilo que aconteceu com o meu irmão poderia acontecer a qualquer cidadão brasileiro. Naquele momento, eu perdi aquele cisma que eu tinha de desagradar alguém, de ofender alguém, e comecei a dizer aquilo que tinha vontade de dizer. E, não tendo compromisso com ninguém, tendo compromisso pura e simplesmente com os trabalhadores, eu resolvi abrir a boca e dizer aquilo que qualquer trabalhador teria vontade de dizer se fosse colocada a ele, num microfone, uma pergunta de um jornalista qualquer. E eu nunca esperei que essas verdades, partindo de um trabalhador, pudessem causar assim a repercussão que causaram ou, diria até, a ascensão política do Sindicato de São Bernardo do Campo e Diadema no cenário político brasileiro. (…)
Um dirigente sindical, hoje, sai da fábrica como operário comum, de macacão. Ele vem para o sindicato e atinge o status de presidente. Ele se dá muito bem com o presidente do TRT, com os juízes, com o governo, sei lá, com as federações e ele é levado ao cargo de vogal da Justiça do Trabalho, que hoje dá um salário de mais de 18 mil cruzeiros [cerca de US$ 1 mil]. Se esse homem não estiver bem preparado politicamente, o que acontece? Ele começa a ter medo de voltar às suas origens. Ele tinha um padrão de vida de 8 mil cruzeiros [cerca de 460 dólares] e ele passou a ter um padrão de vida de 26 mil cruzeiros [US$ 1,4 mil], dificilmente ele vai querer voltar a ter um padrão de vida como o anterior. E é a partir daí que o movimento sindical se perdeu, se perdeu no comodismo que a estrutura permitiu que ele se perdesse. Então, é comum o dirigente sindical se perpetuar dentro do sindicato; praticar, talvez, os mais variados tipos de corrupção e, a partir daí, não é interessante para ele brigar com a empresa, nem brigar com o governo.
Ruy Mesquita — Mas vem a permitir que você policie melhor.
Lula — Existem dirigentes sindicais, de hoje, que já na época que, dizem, tinha no Brasil um grande civismo, que cometiam as mesmas burrices, que cometiam os mesmos atos de corrupção, que cometiam os mesmos atos de medo que cometem hoje. Porque é muito mais fácil ser instrumento de alguma coisa do que ser independente, do que querer criar inimigos, criar inimigos no bom sentido; você querer defender um ponto de vista que pouquíssima gente, nesta terra, tende a defender. (…)
Eu não acho que a classe trabalhadora deva ser instrumento, eu acho que a classe trabalhadora tem que ter uma força viva, tem que ter uma participação, porque ela, sendo maioria, jamais poderá ser tratada como minoria. Eu acho que é a partir daí que a coisa criou, um campo que eu nunca esperava que criasse, é você reivindicar uma independência da classe trabalhadora, coisa que nunca foi reivindicado neste Brasil.
“Se fosse governo, tentaria viver com um salário mínimo”
Para o sindicalista Lula, os trabalhadores não aspiravam uma ascensão na escala social — “ele quer ter o direito de viver com dignidade; ele não quer ser dono da empresa”. Ele defendia que o Brasil desenvolvesse o mercado interno em vez de priorizar as exportações e arriscava um palpite sobre o salário mínimo, à época correspondente a 90 dólares. “Eu, se fosse governo, a primeira coisa que faria seria a experiência de viver com 1.560 cruzeiros”.
Ruy Mesquita — Você disse outro dia, numa entrevista, que o trabalhador não gosta da miséria; o que ele quer é ter o próprio automóvel e ir pescar e tal. Eu tenho a impressão de que a primeira coisa que um trabalhador consciente, como você, devia visar na sua luta é você ascender na escala, deixar de ser trabalhador. Um homem como você, da sua capacidade, das suas qualidades e tudo, já deveria estar pensando em subir.
Lula — Eu não entendo o sentido da palavra subir.
“O sindicalismo só é forte nos países capitalistas”
Em 1978, Lula demonstrava uma visão assumidamente simplista das relações entre capital e trabalho — e até de gestão empresarial. “Economicamente existem três tipos de balanços que as empresas fazem: um para o governo, um para a imprensa e aquele que é verdadeiro”, acreditava. Ele admitia que, como trabalhador, é melhor ser empregado da iniciativa privada do que ser funcionário do governo. “O sindicalismo só é forte onde existe a ganância de poder, a ganância de ganhar bem, a ganância de participação. Só é forte nos países capitalistas.”
Vox Populi com Lula foi ameaçado pelos militares
Neste artigo, Roberto Muylaert relembra como foi a primeira entrevista de Lula na TV, no programa ‘Vox Populi’ da TV Cultura, e a tentativa de um militar de proibir a exibição
Por Roberto Muylaert *
São Paulo, 17 de maio de 1978, uma quarta-feira de muita expectativa. A missão era gravar o programa Vox Populi com Luiz Inácio da Silva, o Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, organizador da primeira greve operária na região metropolitana do ABC paulista, de maio a julho daquele ano — último do governo Geisel — registrando 166 acordos entre empresas e sindicatos, beneficiando 280 mil trabalhadores e tornando figura nacional aquele torneiro mecânico das Indústrias Villares.
Três meses antes, Mino Carta, diretor de redação da IstoÉ, usara do seu reconhecido faro jornalístico para entrevistar Lula (com Bernardo Lerer), personagem que ele descreve como “um troncudo interlocutor de olhos melancólicos e palavras firmes”.
O questionamento insistente de Mino sobre a ideologia do entrevistado era o ponto central da entrevista, que acabou não tendo grandes revelações sobre o tema. Lula afirmou não ter compromisso com ninguém, bravateando, como prova, não assinar o Voz Operária, época em que o simples ato de receber o jornal do Partido Comunista dava cadeia (às vezes tortura). Preferiu falar sobre imposto sindical: “Se a gente não acabar com ele, vamos ficar amarrados ao governo.”
Mas, sob o ponto de vista das restrições do governo (a anistia é de 1979), aparecer na imprensa escrita era uma coisa, na televisão era outra. Por isso mesmo, a mídia eletrônica nem sonhava com a possibilidade de colocar no ar um programa de entrevistas que pudesse incluir políticos.
O Vox Populi se originou de um pedido de Max Feffer, secretário de Cultura do governador Paulo Egydio Martins, que desejava criar um programa com audiência, na TV Cultura. Entusiasmei-me com o projeto e perguntei se o secretário arriscaria um programa de entrevistas com pauta variada, apesar dos riscos. Ele aceitou, e logo partimos para o processo de criação, com Carlos Queiroz Telles, que sugeriu o nome Vox Populi.
Paulo Roberto Leandro foi escolhido para coordenador do programa no estúdio. A idéia, que acabou funcionando, era a de filmar (em 16 milímetros) pessoas em diversos lugares da cidade, fazendo perguntas ao entrevistado escolhido de antemão. No estúdio, ele respondia de improviso às questões projetadas, e o programa, gravado, era exibido com as perguntas e respostas.
Há 25 anos, o programa estreava, com o coronel Erasmo Dias respondendo às perguntas. Ele era o temido secretário de Segurança do governo estadual, indicado pelos militares. Sua presença atemorizou de verdade o pessoal que estava no estúdio, contando com uma possível reação violenta dele às perguntas que o povo formulara. Mas tudo correu bem, e o coronel acabou sendo amável com todo mundo. Na semana seguinte, a suavidade tomou conta do estúdio. A doce Regina Duarte respondeu às perguntas, utilizando seus recursos de sedução e demonstrando intimidade com as câmeras. Encantou a todos com um sorriso meigo, na condição de “namoradinha do Brasil”.
No terceiro Vox Populi foi a vez de Lula, uma imagem que os militares acharam interessante liberar para a TV Cultura, então uma emissora educativa regional, de pouca audiência, meio leite de pato em relação às TVs comerciais. E com a vantagem de que, depois dessa entrevista, ninguém poderia dizer que Lula estava proibido de aparecer na televisão.
Conheci Luiz Inácio naquele mesmo dia, na ante-sala do estúdio, tomando guaraná e comendo sanduíche de queijo, fornecidos pela produção. Passei-lhe as instruções sobre como funcionaria a gravação. Ele fazia o tipo sisudo-compenetrado-indiferente, porém simpático, com seu bigode de duas pontas voltadas para baixo, no melhor estilo Pancho Villa, costeletas pronunciadas, camisa de gola olímpica azul-escuro.
Estávamos diante da oportunidade única de manter Lula no estúdio por uma hora e vinte, fumando sem parar, respondendo às perguntas sempre sério e compenetrado, com espaçados, curtos, e raros sorrisos.
Foi um pronunciamento centrado no “sufoco da classe trabalhadora, que faz greve quando sente o estômago doer”. Lula disse que voltaria à Villares no final do seu segundo mandato, para seguir trabalhando como mestre júnior, posto a que havia sido promovido, embora se considerasse apenas torneiro mecânico.
“Não tenho pretensão política, isso faço questão de deixar bem claro. Não sou filiado a partidos políticos, e tenho certeza de que jamais participarei da vida política, porque eu não dou para política”, foi a sua declaração mais enfática, e a menos profética, uma verdadeira pérola, vista a 25 anos de distância.
Mas, a parte da jornada que seria de arrepiar ainda estava por vir. Como se tratava da primeira aparição longa na TV de um dirigente sindical atuante, resolvi ir até a emissora, para me certificar de que o programa entraria no ar normalmente, no horário previsto, 21h do domingo, 21 de maio de 1978. No saguão dos estúdios só estavam os profissionais de vídeo e o pessoal do controle-mestre, os que colocam a estação no ar. Mais ninguém.
Vinte minutos antes do horário previsto, irrompe no estúdio da TV Cultura — após proibir aos porteiros o anúncio de sua presença — , um oficial do Exército, do corpo de pára-quedistas, que exigiu com firmeza a posse imediata da fita de vídeo, informando, ao mesmo tempo, que o programa não iria ao ar. O detalhe do regimento a que pertencia o oficial só soube depois, quando me contaram que os pára-quedistas usam as calças para dentro das botas.
O militar só não arrancou a fita das minhas mãos porque ela já estava lá em cima, na sala de exibição de VT. Pedi tempo para contatar o secretário Max Feffer, que, em seguida, falou com Paulo Egydio. O governador havia presidido, pouco tempo antes, a cerimônia de posse de Lula no sindicato, em São Bernardo do Campo.
O oficial demonstrava sinais de crescente impaciência, estalando tapas na própria coxa, quando percebeu que as nossas defesas poderiam (quem sabe?) chegar a tempo.
O final feliz só surgiu quando faltavam míseros 5 minutos para o início do programa: Paulo Egydio conseguiu contatos decisivos em Brasília, até que um telefonema providencial convenceu o militar a desistir da fita, liberando-o da sua zelosa iniciativa.
No dia seguinte, a reação dos militares ao programa foi mais ou menos assim: “Parece que esse tal de Lula não é comunista mesmo!”
* Roberto Muylaert era diretor da TV Cultura em 1978 e publicou este artigo em novembro de 2003, na revista Ícaro.
Originally published at http://delmanto.wordpress.com on February 1, 2009.